...transcrevo abaixo um trecho da introdução do Livro Mulheres que correm com Lobos:
A alma feminina não podem ser tratada tentando-se esculpi-la de uma forma mais adequada a uma cultura, nem é possível dobrá-la até que tenha um formato intelectual mais aceitável para aqueles que alegam ser os únicos detentores do consciente. Não. Foi isso o que já provocou a transformação de milhões de mulheres, que começaram como forças poderosas e naturais, em párias na sua própria cultura. Na verdade, a meta deve ser a recuperação e o resgate da bela forma psíquica natural da mulher.
Os contos de fadas, os mitos e as histórias proporcionam uma compreensão
que aguça nosso olhar para que possamos escolher o caminho deixado pela natureza
selvagem. As instruções encontradas nas histórias nos confirmam que o caminho não
terminou, mas que ele ainda conduz as mulheres mais longe, e ainda mais longe, na
direção do seu próprio conhecimento. As trilhas que todas estamos seguindo são
aquelas do arquétipo da Mulher Selvagem, o Self instintivo inato.
Chamo-a de Mulher Selvagem porque essas exalas palavras, mulher e
selvagem, criam llamar o tocar a Ia puerta, a batida dos contos de fadas à porta da
psique profunda da mulher. Llamar o tocar a Ia puerta significa literalmente tocar o
nstrumento do nome para abrir uma porta. Significa usar palavras para obter a
abertura de uma passagem. Não importa a cultura pela qual a mulher seja
nfluenciada, ela compreende as palavras mulher e selvagem intuitivamente.
Quando as mulheres ouvem essas palavras, uma lembrança muito antiga é
cionada, voltando a ter vida. Trata-se da lembrança do nosso parentesco absoluto,
inegável e irrevogável com o feminino selvagem, um relacionamento que pode ter se
tornado espectral pela negligência, que pode ter sido soterrado pelo excesso de
domesticação, proscrito pela cultura que nos cerca ou simplesmente não ser mais
compreendido. Podemos ter-nos esquecido do seu nome, podemos não atender
quando ela chama o nosso; mas na nossa medula nós a conhecemos e sentimos sua
falta. Sabemos que ela nos pertence; bem como nós a ela.
Foi dentro desse relacionamento essencial, fundamental e básico que
nascemos e na nossa essência é dele que derivamos.
O arquétipo da Mulher Selvagem envolve o ser alfa matrilinear. Há ocasiões em que vivenciamos sua presença, mesmo que transitoriamente, e ficamos loucas de vontade de continuar. Para algumas mulheres, essa revitalizante “prova da natureza” ocorre durante a gravidez, durante a amamentação, durante o milagre das mudanças que surgem à medida que se educa um filho, durante os cuidados que dispensamos a um relacionamento amoroso, os mesmos que dispensaríamos a um jardim muito querido.
Por meio da visão também temos uma percepção dela; através de cenas de rara beleza. Costumo sentir sua presença quando vejo o que no interior chamamos de pôr -do-sol divino. Senti que ela se mexeu dentro de mim quando vi os pescadores saindo do lago ao escurecer com as lanternas acesas e também quando vi os dedinhos dos pés do meu filho recém-nascido, todos enfileirados como grãos de milho doce na espiga. Nós a vemos sempre que a vemos, o que ocorre por toda a parte.
Ela também chega a nós através dos sons; da música que faz vibrar o esterno e
que anima o coração. Ela chega com o tambor, o assobio, o chamado e o grito. Ela
vem com a palavra escrita e falada. Às vezes uma palavra, uma frase, um poema ou
uma história soa tão bem, soa tão perfeito que faz com que nos lembremos, pelo
menos por um instante, da substância da qual somos feitas e do lugar que é o nosso
verdadeiro lar.
Essas efêmeras "provas da natureza" vêm durante a mística da inspiração —
ah, ela está aqui; ai, ela já se foi. O anseio por ela surge quando nos encontramos por
acaso com alguém que manteve esse relacionamento selvagem. Ele brota quando
percebemos que dedicamos pouquíssimo tempo à fogueira mística ou ao desejo de
sonhar, um tempo ínfimo à nossa própria vida criativa, ao trabalho da nossa vida ou
aos nossos verdadeiros amores.
Contudo, são esses vislumbres fugazes, originados tanto da beleza quanto da
perda, que nos deixam tão desoladas, tão agitadas, tão ansiosas que acabamos por
seguir nossa natureza selvagem. É então que saltamos floresta adentro, em meio ao
deserto ou à neve, e corremos muito, com nossos olhos varrendo o solo, nossos
ouvidos em fina sintonia, procurando em cima e embaixo, em busca de uma pista, um
resquício, um sinal de que ela ainda está viva, de que não perdemos nossa
oportunidade. E, quando farejamos seu rastro, é natural que corramos muito para
alcançá-la, que nos livremos da mesa de trabalho, dos relacionamentos, que
esvaziemos nossa mente, viremos uma nova página, insistamos numa ruptura,
desobedeçamos as regras, paremos o mundo, porque não vamos mais prosseguir sem
ela.
Uma vez que as mulheres a tenham perdido e a tenham recuperado, elas
lutarão com garra para mantê-la, pois com ela suas vidas criativas florescem; seus
relacionamentos adquirem significado, profundidade e saúde; seus ciclos de
sexualidade, criatividade, trabalho e diversão são restabelecidos; elas deixam de ser
alvos para as atividades predatórias dos outros; segundo as leis da natureza, elas têm
igual direito a crescer e vicejar. Agora, seu cansaço do final do dia tem como origem o
trabalho e esforços satisfatórios, não o fato de viverem enclausuradas num
relacionamento, num emprego ou num estado de espírito pequenos demais. Elas
sabem instintivamente quando as coisas devem morrer e quando devem viver; elas
sabem como ir embora e como ficar.
Quando as mulheres reafirmam seu relacionamento com a natureza selvagem,
elas recebem o dom de dispor de uma observadora interna permanente, uma sábia,
uma visionária, um oráculo, uma inspiradora, uma intuitiva, uma criadora, uma
inventora e uma ouvinte que guia, sugere e estimula uma vida vibrante nos mundos
interior e exterior. Quando as mulheres estão com a Mulher Selvagem, a realidade
desse relacionamento transparece nelas. Não importa o que aconteça, essa instrutora,
mãe e mentora selvagem dá sustentação às suas vidas interior e exterior.
Portanto, o termo selvagem neste contexto não é usado em seu atual sentido
pejorativo de algo fora de controle, mas em seu sentido original, de viver uma vida
natural, uma vida em que a criatura tenha uma integridade inata e limites saudáveis.
Essas palavras, mulher e selvagem, fazem com que as mulheres se lembrem de quem
são e do que representam. Elas criam uma imagem para descrever a força que
sustenta todas as fêmeas. Elas encarnam uma força sem a qual as mulheres não
podem viver.
O arquétipo da Mulher Selvagem pode ser expresso em outros termos
igualmente apropriados. Pode-se chamar essa poderosa natureza psicológica de
natureza instintiva, mas a Mulher Selvagem é a força que está por trás dela. Pode-se
chamá-la de psique natural, mas também o arquétipo da Mulher Selvagem se
encontra por trás dela. Pode-se chamá-la de natureza básica e inata das mulheres.
Pode-se chamá-la de natureza intrínseca, inerente às mulheres. Na poesia, ela
poderia ser chamada de "Outra", "sete oceanos do universo", "bosques distantes" ou
"A amiga".1 Na psicanálise, e a partir de perspectivas diversas, ela seria chamada de
id, de Self, de natureza medial. Na biologia, ela seria chamada de natureza típica ou
fundamental.
No entanto, por ser tácita, presciente e visceral, entre as cantadoras ela é
conhecida como a natureza sábia ou conhecedora. Ela é às vezes chamada de "mulher
que mora no final do tempo" ou de "mulher que mora no fim do mundo". E essa
criatura é sempre uma megera-criadora, uma deusa da morte, uma virgem decaída ou
qualquer uma de uma série de outras personificações. Ela é amiga e mãe de todas as
que se perderam, de todas as que precisam aprender, de todas as que têm um enigma
para resolver, de todas as que estão lá fora na floresta ou no deserto, vagando e
procurando, aprendendo e se reencontrando...